Entendimento da ANACOM sobre a aplicação da alínea q) do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de Março, às comunicações electrónicas


/ Atualizado em 07.05.2008

Foi a ANACOM confrontada com a publicação, no passado dia 26 de Março, do Decreto-Lei n.º 57/2008, que tem como objecto estabelecer o regime jurídico aplicável às práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores, ocorridas antes, durante ou após uma transacção comercial relativa a um bem ou serviço, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/29/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, relativa às práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores no mercado interno.

Não obstante a natureza horizontal do diploma, as declarações que então vieram a público centraram-se na sua aplicação ao sector das comunicações electrónicas, em concreto quanto à norma constante da al. q) do art. 8º, nos termos da qual é proibida como prática comercial desleal, porque considerada ''acção enganosa em qualquer circunstância'', ''(...) fazer o arredondamento em alta do preço, da duração temporal ou de outro factor, directa ou indirectamente, relacionado com o fornecimento do bem ou com a prestação do serviço, que não tenha uma correspondência exacta e directa no gasto ou utilização efectivos realizados pelo consumidor e que conduza ao aumento do preço a pagar por este''.

Importa desde já referir que a referida regra não consta da Directiva n.º 2005/29/CE que o Decreto-Lei n.º 57/2008 visava transpor, não se reconduzindo a nenhuma das acções elencadas na lista taxativa constante da citada directiva.

Tendo em conta que o referido decreto-lei é aplicável às comunicações electrónicas, a ANACOM, no dia 1 de Abril, data de entrada em vigor do diploma, afirmou que dada a complexidade dos problemas suscitados por este novo normativo legal se tornava necessária uma adequada definição das soluções necessárias à supervisão da sua aplicação neste sector e comprometeu-se a definir no prazo de 30 dias, sem prejuízo da aplicação imediata do diploma, um conjunto de regras para ajuizar da conformidade do comportamento dos operadores de comunicações electrónicas com o referido normativo legal.

Como ponto de partida torna-se fundamental procurar um sentido interpretativo para a referida norma e, alcançado esse sentido, verificar do cumprimento da mesma por parte dos operadores. Neste contexto, a análise do que deve entender-se por arredondamento em alta da duração temporal tornou-se particularmente premente atendendo aos modelos de tarifação existentes nas comunicações electrónicas e à leitura que publicamente foi sendo avançada para a interpretação da referida regra.

Na interpretação da norma não pode deixar de se atender desde logo ao seguinte:

a) Ao conceito de prática enganosa constante do diploma, que pressupõe a presença do elemento de indução do consumidor em erro de modo a conduzi-lo a uma decisão de contratar que, de outro modo, não teria tomado;

b) Ao facto de que actualmente, os serviços de comunicações electrónicas são muito diversificados e, consequentemente, também o são os respectivos modelos de tarifação.

  • Em primeiro lugar, os modelos de tarifação adoptados pelos operadores assentam nos custos em que estes incorrem e os custos não são só os custos das próprias comunicações: há custos fixos de instalação/adesão e estabelecimento de chamadas, por exemplo;
     
  • Em segundo lugar, o custo de uma comunicação não depende necessariamente da duração dessa comunicação, o que sucede nos serviços que são tarifados de acordo com o respectivo volume de tráfego e não com uma unidade temporal de facturação.
     
  • Em terceiro lugar, tendo em atenção a convergência de vários serviços, há tarifários que oferecem, basicamente, disponibilidade, como é o caso do ''triple-play''. Aí não faz qualquer sentido a noção de uso singularizado de cada um dos serviços disponibilizáveis. O consumidor compra ''capacidade'' e escolhe a que melhor lhe serve.

Pode assim concluir-se naturalmente que a norma em causa, quando se refere ao arredondamento da duração temporal, apenas é aplicável aos serviços de comunicações electrónicas em que esse factor possa ter implicação no preço do serviço, o que praticamente se restringe ao serviço telefónico (voz) e ao serviço de Internet dial-up1.

Note-se que mesmo o serviço telefónico de voz, que do ponto de vista técnico (da oferta) será um bem homogéneo, na verdade pode representar diversos ''bens económicos'', consoante o tipo de consumidor, com unidades de medida distintas, logo não necessariamente períodos de tempo (pacotes, capacidades, etc.) nem períodos em concreto (segundos, dezenas de segundos, minutos, mês, etc.).

Se é certo que nas comunicações electrónicas, mais precisamente no serviço telefónico em local fixo, há quase uma década se transitou da facturação por impulso (única unidade de medida utilizada na época) para a chamada facturação ''ao segundo'' (embora sempre se tivesse mantido um ''período inicial'' ou um ''preço inicial com crédito de tempo''), não é menos certo que a norma agora publicada, tal como está redigida, não impõe a adopção de uma unidade temporal de facturação específica.

Importa portanto verificar se nos tarifários das comunicações electrónicas referidos (voz e Internet dial-up) existe equivalência objectiva entre os períodos iniciais das chamadas e a utilidade retirada pelos consumidores, no sentido de utilização efectiva do serviço, uma vez que esta correspondência é uma exigência central da norma em análise.

E isto porque parece evidente que nenhum consumidor poderá ser obrigado a pagar mais do que aquilo que gastou ou pretende gastar; mas o consumidor deve ser livre de optar por um tarifário em que adquire, por exemplo, um pacote de minutos, onde o preço não varia independentemente de ''gastar'' ou não todos os minutos, por entender que esse tarifário lhe é mais vantajoso. A questão é que não seja obrigado a comprar algo que não quer, por não ter alternativas.

A tónica é sempre a da liberdade tarifária por parte do operador, garantida pela Lei das Comunicações Electrónicas (LCE), e da liberdade de escolha do consumidor.

E neste contexto é entendimento da ANACOM que não se pode desligar o valor da utilização do consumidor dos reais custos de proporcionar essa utilização para o operador.

Os custos dos operadores no fornecimento do serviço das chamadas não são lineares, isto é, para os operadores, disponibilizar as condições que permitem o fornecimento de uma chamada de 30 segundos não custa 30 vezes mais que fornecer uma chamada de duração de um segundo (se é que uma chamada desta duração faz algum sentido). Ao contrário, o custo de uma hipotética chamada de 1 segundo terá, em termos relativos, custos muito mais elevados que a chamada de 30 segundos, devido à existência de custos fixos significativos.

Estes custos fixos têm de ser recuperados pelos operadores e é o modo como cada um deles perspectiva essa recuperação que é conforme com a liberdade tarifária - ela própria constituindo-se um verdadeiro motor da concorrência.

Por isso, a existência de planos tarifários com um período fixo inicial não tem de configurar, em princípio, qualquer exploração ilegítima do consumidor, sob alegação de que está a pagar mais do que usa. O fundamental é que exista uma correspondência ou equivalência objectiva entre o que está a pagar e aquilo que está a usar ou até que tem o direito de usar.

Este direito de usar que, em certos tarifários, é proposto (em princípio, não imposto) ao consumidor pelo operador, desde que correctamente informado, não constitui qualquer abuso do consumidor, antes lhe abre o leque de escolha. Questão diferente é a da transparência tarifária, que deve ser sempre exigida, e que obriga os operadores a divulgarem adequadamente os seus tarifários de modo a que os consumidores possam optar esclarecidamente pelo modelo que melhor satisfaz as suas necessidades. A ANACOM dará especial relevo a esta obrigação de transparência e supervisionará o seu cumprimento por parte dos operadores, nomeadamente em termos de esclarecimento objectivo e devidamente publicitado da existência de preços iniciais e da unidade de facturação aplicável em cada tarifário.

Assim, o ideal para um consumidor é ter um leque de escolha alargada, sem subterfúgios, de forma a que ele possa optar, em cada momento, pelo que melhor lhe convém, o que pressupõe liberdade de opção entre tarifários, sem restrições, a menos que, contratualmente, e, de novo pela escolha consciente, o consumidor tenha escolhido, a troco de algo (por exemplo, subsidiação de equipamento) ficar preso a um contrato por um dado período de tempo.

Neste contexto, o Presidente do Conselho de Administração da ANACOM decidiu auscultar o Conselho Consultivo desta Autoridade, tendo o mesmo reunido no dia 23 de Abril para discutir a aplicação do referido Decreto-Lei n.º 57/2008, no tocante, em particular, à disposição que considera como prática comercial enganosa ''fazer o arredondamento em alta do preço, da duração temporal ou de outro factor, directa ou indirectamente, relacionado com o fornecimento do bem ou com a prestação do serviço que não tenha uma correspondência exacta e directa no gasto ou utilização efectivos realizados pelo consumidor e que conduza ao aumento do preço a pagar por este''.

Os princípios acabados de expor quanto à interpretação da norma em causa foram apresentados na referida reunião e mereceram acolhimento generalizado por parte do Conselho Consultivo, no qual se encontram representados, nomeadamente, operadores de comunicações electrónicas, consumidores individuais dos serviços de comunicações electrónicas por designação das associações de consumidores e diversos membros do Governo, entre os quais o responsável pela área da economia.

Em suma, e no entendimento da ANACOM, não faz qualquer sentido considerar que há chamadas, isto é, comunicações que durem 1 segundo. Há um período mínimo que constitui o que podemos chamar um ''produto de voz''. Ele satisfaz, a um tempo, uma necessidade mínima do consumidor e a unidade mínima sobre a qual pode ser repartido o custo fixo ou, mais provavelmente, parte deste custo fixo. Não se trata de um consumo mínimo obrigatório e muito menos de uma taxa de activação. Após este período mínimo, que satisfaça aquelas condições, faz por isso sentido, para cumprimento da regra em causa, que a facturação seja ao segundo, isto é, que não haja arredondamentos em alta da duração da chamada, obrigatoriamente impostos aos consumidores. No entendimento da ANACOM, é este o sentido da regra - isto é, que os operadores tenham disponíveis, para escolha dos consumidores, e como tal, em alternativa a outros modelos, um tarifário desta natureza.

Assim, a existência em todos os operadores de um tarifário desta natureza - ou seja, com um único período inicial seguido de facturação ao segundo - que pode constituir uma lógica de ''opt-in'' face a todos os tarifários existentes, parece ser a melhor forma de  garantir o equilíbrio entre a exigência de liberdade tarifária implicada na LCE e as preocupações do diploma agora em apreço.

Neste contexto, faz sentido que os consumidores possam optar por tarifários desta natureza sem quaisquer encargos, nomeadamente relativos a eventuais prazos de fidelização a que estivessem vinculados, quando em resultado deste entendimento da ANACOM esses tarifários sejam agora introduzidos por operadores que deles não dispusessem.

Isto sem prejuízo de recordar sempre que a ANACOM não tem qualquer poder de regular os preços de retalho, com excepção da verificação do cumprimento das obrigações dos operadores com PMS nos mercados retalhistas de banda estreita e da regulação de preços do serviço universal.

Tendo em conta o exposto, os operadores de comunicações electrónicas devem, no prazo de 1 mês, actuar de acordo com o presente entendimento da ANACOM na aplicação da regra constante da alínea q) do artigo 8º do Decreto Lei n.º 57/2008, devendo quaisquer eventuais dificuldades de implementação nesse prazo ser justificadas e atempadamente apresentadas a esta Autoridade.

Notas
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1 Não caem nesta exigência, impondo-se uma leitura diferenciada os casos de SMS e Banda Larga; roaming; chamadas especiais para números específicos como por exemplo, as chamadas para números curtos, serviços de apoio a clientes, serviços de custos partilhados ou de tarifa majorada; postos públicos; tarifários empresariais.